Para entendermos melhor as possíveis relações entre o feminismo e o espiritismo, é preciso que antes de tudo sejamos capazes de compreender, historicamente, a relação entre o masculino e o feminino enquanto formas de organização social. Depois de estabelecidas essas informações, poderemos passar a questionamentos mais profundos sobre o gênero até chergamos ao conceito de feminismo.

Gostaria de explicar que a relação entre o espiritismo e o feminismo que será estabelecida aqui não reflete necessariamente a visão espírita de modo geral. Trata-se apenas de um estudo que busca explicar o social pelo espiritual, numa tentativa de produzir um estudo de Sociologia Espírita, com base em leituras e reflexões individuais. 

O tema será dividido em 4 capítulos principais:

I - A organização social ditada pelo gênero
II - O gênero e a espiritualidade
III - A evolução do planeta
IV - O feminismo

Peço, uma vez mais, paciência com as postagens, posto que o assunto pede pesquisas aprofundadas que nem sempre tenho tempo de fazer durante a semana - no momento, ando mais ocupada do que de costume com a faculdade. Dito isto, comecemos. 


I - A organização social ditada pelo gênero

A sociedade nem sempre se construiu da forma que conhecemos hoje em dia. A cada época e a cada civilização correspondem formas de organização sociais diferentes, com seu conjunto de normas, valores e hábitos particulares, que resistiram ou não às transformações naturais da história. 
A realidade que conhecemos é o produto dessas constantes criações e transformações. Aquilo que consideramos real socialmente não é, de fato, sólido e imutável. Para que a realidade exista, ela precisa ser criada.
Podemos observar que em todas as sociedades conhecidas, o gênero foi, desde o princípio, um elemento importante na constituição da realidade social e da organização social, principalmente no que diz respeito à divisão de tarefas. 

a. O mundo cosmogônico

O mundo cosmogônico (ou pré-moderno) é caracterizado pela idéia da unidade. Tudo o que existe, nesse mundo, está em relação com todo o resto, numa dinâmica de complementaridade, pois tudo faz parte da mesma criação divina. O feminino e o masculino, por consequência, são vistos como forças opostas, mas complementares, onde cada um tem uma tarefa específica. O que importa, neste contexto, são as relações entre os indivíduos, o seu papel dentro da sociedade, a transmissão de tradições e hábitos - e não os indivíduos em si. 
Nesse caso, ser homem ou ser mulher significa apenas um papel a ser seguido, uma tarefa a ser performada. Por exemplo: o homem é aquele que sai em busca de alimento; a mulher é aquela que cuida das crianças, etc. Segue-se uma lógica « inversa » daquela à quais estamos acostumados: 

Se o indivíduo performa as tarefas consideradas femininas, ele é mulher.
Se o indivíduo performa as tarefas consideradas masculinas, ele é homem.

Na tribo dos Nuers, na África, o papel da mulher estava relacionado apenas à reprodução. A mulher era retirada de sua família para casar-se e ter filhos que pertenceriam ao clã do marido. Quando se descobria que uma mulher era estéril, ela era devolvida à sua família - já que ela não podia ter filhos, ela não era mulher, ela era um homem - e, em seguida, ela deveria procurar uma esposa para casar-se; a mulher estéril faria então o papel do homem, participando de todas as atividades masculinas. 
Em inúmeras sociedades tribais Norte-Americanas, existia o conceito de two-spirits (dois espíritos), que era um indivíduo que, por diferentes razões, performava o papel de homem simultaneamente ao papel de mulher (sendo considerado assim portador de dois espíritos - um feminino e um masculino). Em outras tribos, também Norte-Americanas, no momento do ritual de passagem da infância para a adolescência, eram colocados na frente da criança uma flecha e uma cesta, para que ela escolhesse entre os dois. Caso ela escolhesse a flecha, ela era « homem » e iria participar das atividades masculinas; caso escolhesse a cesta, ela era « mulher » e, caso escolhesse ambos (ou nenhum), ela era considerada two-spirits
Mesmo em diversos manuais de medicina europeus, até em meados do século XVI, os órgãos sexuais eram representados como sendo um órgão único, comum a ambos os sexos: um era o sexo « interno » e o outro « externo ». 
Percebemos então que, em diversos lugares do mundo, e em diversas épocas diferentes, era o gênero - ou seja, o papel social do indivíduo - que determinava seu sexo, e não o contrário. O sexo biológico não tinha autonomia nenhuma na definição dos indivíduos. 


b. O mundo moderno

No mundo moderno (a partir do século XVI), a evolução da ciência começa a "categorizar" o mundo, em todos os seus aspectos. Opera-se aí uma fragmentação da realidade. Não consideramos mais o mundo como unidade - ele se desfaz em estilhaços que devem ser estudados individualmente para que possamos compreendê-lo. 
Cria-se então o conceito de "natureza", que até então não existia como conceito autônomo. E é a natureza que, através das Ciências Naturais, ditará as regras nesse novo mundo. 
No que se refere ao gênero, acontece uma inversão - não é mais o papel na sociedade que define o indivíduo, mas o contrário: é o corpo do indivíduo que define seu papel na sociedade.

Se o indivíduo é biologicamente mulher, ele deverá performar as atividades consideradas femininas.
Se o indivíduo é biologicamente homem, ele deverá performar as atividades consideradas masculinas.

Esta abordagem é chamada "Naturalista", porque ela supõe que a identificação do sexo (biológico) com o gênero (performativo) é natural. É dessa abordagem que derivam inúmeras afirmações que tomamos como verdades absolutas hoje em dia - como a crença de que a mulher é "naturalmente" mais dócil do que o homem, ou de que o homem é "naturalmente" mais violento do que a mulher. Porém, devemos nos lembrar de que essas afirmações são apenas o reflexo de uma corrente de pensamento - vimos, mais acima, como indivíduos de sexos biológicos feminino podem se adaptar às tarefas masculinas (caça, guerra) e vice-versa. Esta realidade, que tomamos por imutável, é, também, resultado de criações e transformações sociais. 
No mundo cosmogônico, como já dissemos, os gêneros uniam-se e separavam-se por uma lógica de complementaridade. Existia, é claro, uma hierarquia de poder, mas ela estava ligada ao papel do indivíduo na sociedade, e não à identidade do indivíduo em si. 
No mundo moderno, essa hierarquia continua a existir, mas ela se torna desequilíbrio. O indivíduo é "prisioneiro" de seu sexo biológico; é seu corpo quem define qual será sua conduta social, psíquica, sexual e afetiva. 
Nesse mundo, quando o gênero e o sexo biológico não se correspondem, o indivíduo é considerado louco, perverso ou doente - que é como foram vistos, durante tantos anos, os homossexuais, os transexuais; para as mulheres, criou-se até mesmo uma doença, a "histeria", que mais tarde provou-se ser apenas o resultado de uma repressão sexual intensa. 



c. A abordagem construtivista

A abordagem melhor considerada nas ciências sociais, atualmente, é a Construtivista - um reflexo do pensamento feminista atual, a partir das reflexões de Simone de Beauvoir em seu livro "O Segundo Sexo"e também de Judith Butler, para quem "o gênero é performativo"- onde considera-se o gênero como uma construção social. 

Não é que a mulher seja mais apta a performar atividades "femininas", na verdade ela é ensinada desde muito cedo a performar tais atividades.
Não é que o homem seja mais apto a performar atividades "masculinas", na verdade ele é ensinado desde muito cedo a performar tais atividades.

Fala-se de socialização - que significa ensinar ao indivíduo o papel que é esperado dele, socialmente. Vemos isso acontecer desde a mais jovem infância - os brinquedos e atividades vistos como "de menina" relacionam-se sempre com o cuidado de crianças, o cuidado da casa, a moda (visto que a aparência é considerada de extrema importância para as mulheres), a amizade, a docibilidade; enquanto os brinquedos e atividades "para meninos" têm uma dinâmica completamente diferente, que se relaciona antes à competição, à violência, à auto-afirmação. Desde cedo, fica claro à criança o que se espera que ela seja - e principalmente, o que se espera que ela não seja. 

Creio que essa abordagem é a que melhor se relaciona com o Espiritismo, pois nela considera-se que o indivíduo não nasce "naturalmente homem" ou "naturalmente mulher", o que é uma verdade quando nos lembramos que o espírito não tem sexo ou gênero. Um espírito pode, por necessidade ou escolha, encarnar num corpo feminino logo após uma encarnação masculina, e vice-versa. Essa escolha raramente tem por causa uma "identificação" do espírito a determinado gênero. De acordo com o Livro do Espíritos, questão 202:

"Quando errante, que prefere o Espírito: encarnar no corpo de um homem, ou de uma mulher?
“Isso pouco lhe importa. O que o guia na escolha são as provas por que haja de passar."

Hoje em dia, vivemos uma oposição entre a abordagem Naturalista e a abordagem Construtivista-Feminista, com mobilizações e combates individuais e coletivos que atravessam o planeta. 
Veremos de forma mais profunda como o Espiritismo interpreta o gênero no próximo capítulo.